A população negra compõe mais da metade dos brasileiros (cerca de 54%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o país com a maior prevalência de ansiedade no mundo e o segundo, nas Américas, em casos de depressão. O racismo é um dos motivos que influenciam esses rankings. Por esses e outros fatores, o tema “Consciência Negra” é imprescindível para a saúde e evolução da nossa sociedade.

Abordar a questão requer conhecimento, sensibilidade e vivência. Por isso, a Copass Saúde buscou a palavra de quem traz na pele e na história de vida as referências para falar com propriedade sobre os desafios de ser uma mulher negra e o poder de compreender o seu valor e o seu lugar.

Perfil

A beneficiária Shirley Santos Cecílio, 56 anos, é negra, formada em Ciências Sociais e recém-aposentada, após 30 anos de trabalho na Copasa, em Divinópolis. Atuou em várias áreas dentro da empresa, o que, segundo ela, “lhe deu a felicidade de ter uma noção geral sobre o trabalho e conhecer muitas pessoas bacanas”. Foi presidente da CIPA em 2019, trabalhou em setores como Recursos Humanos, Financeiro e se aposentou no setor de Contratação. 

Shirley é viúva e mãe de duas filhas. A mais velha, Lais, 29 anos, é engenheira ambiental, professora e modelo. A caçula, Núbia, 23 anos, faz faculdade de psicologia. A liberdade dessas mulheres para ser e estar onde quiserem é uma conquista ainda distante para grande parte da população negra. Mas é um grande exemplo de como o poder da consciência pode transformar a realidade.

 

Copass: Qual a importância do movimento pela Consciência Negra para você?

Shirley: A Consciência Negra não pode ser marcada por um dia ou um mês porque essa é uma questão que nos afeta todos os dias. É um movimento diretamente ligado à procura pela melhoria da condição do negro na sociedade e é importante para lembrar a todos dos traumas que o racismo deixa na subjetividade das pessoas negras. É para lembrar o quanto a autoestima da pessoa negra foi e é afetada por isso. Assim, é fundamental relembrar essas mazelas, essas nódoas deixadas pela escravidão para tentar curar as sequelas. Precisamos ter consciência de que estamos aqui por direito, e não por favor, e que todos temos direitos iguais.

Copass: Como você acha que a saúde mental da pessoa negra é afetada pelo preconceito e a discriminação?

Shirley: O que geralmente acontecia (e ainda acontece) é que, de uma forma muito sutil, a pessoa negra é levada a pensar que não é adequada para ocupar determinados espaços, que não se encaixa, que o seu cabelo e a sua cor não seguem o padrão, então, estão errados. Quando a pessoa perde o valor por sua identidade, ela deixa de se cuidar, perde o autoafeto, a autoaceitação e não se sente pertencente ao seu lugar de direito. Para a maioria dos negros, essa história é parecida.

Desde crianças, na escola, fomos apartados, não éramos convidados para participar de encenações com papéis de destaque, como princesas, por exemplo. São questões que marcam a infância e a adolescência também.  E o que isso vai causando ao longo da vida é um mal-estar, um distanciamento, uma dificuldade de acesso a determinados espaços por não se sentir capaz, uma sensação de não pertencimento. Isso afeta a saúde mental da pessoa de forma significativa, mesmo que ela não perceba que esta é a causa do seu sofrimento. Dizem que a depressão é uma doença do século XXI, mas eu acredito que ela veio com os escravizados, nos navios negreiros, e caminha com a população negra desde então. O racismo é uma violência, às vezes declarada, às vezes subjetiva, que causa adoecimento mental.

Copass: Você percebe grandes mudanças a partir do movimento de valorização da pessoa e da cultura negra?

Shirley: As ações de afirmação da raça negra, políticas públicas voltadas para a igualdade têm feito a sociedade acordar. É perceptível que o negro, hoje, tem mais acesso às universidades, por exemplo. A meu ver, essa é uma dívida que a sociedade tem para com os negros e se não houver ações para promover a inclusão, nunca vamos conseguir alcançar as mesmas condições da população branca porque a defasagem é muito grande.  Igualar as condições ainda vai levar muito tempo, mas dar oportunidade para as gerações que estão aí, agora, é um avanço necessário.

Por outro lado, as pessoas negras também vão se fortalecendo e modificando a forma de se ver. O movimento em relação ao cabelo do negro é um exemplo. Há um tempo, o cabelo afro não era aceito. Tínhamos que alisar o cabelo, mesmo que fossem necessários métodos agressivos. Hoje, as mulheres já têm orgulho do seu cabelo. Estamos nos aceitando mais como somos, nos amando mais, nos achando mais bonitas e nos sentindo mais confortáveis com a nossa imagem, sem nos importar muito com a opinião das outras pessoas. E quando agimos assim, e nos sentimos representadas, estamos dando forças para outras pessoas negras, como nossos filhos, para gostarem de sua própria identidade e se sentirem pertencentes ao seu lugar.

Copass: Hoje, você se vê de forma diferente?

Shirley: Sim, agora eu me vejo! Porque, antes, eu não me via. Eu sempre me comparava com os padrões. Eu não gostava das minhas características físicas e tentava disfarçá-las. Agora, eu gosto de me ver, me acho bonita, me reconheço sem precisar mudar nada! Eu sei do meu valor e sei que tudo que conquistei foi porque eu mereci.

Copass: A sua formação como cientista social contribuiu para moldar a sua consciência negra?

Shirley: Muito. Embora eu não tenha atuado na área, ir para a faculdade “virou uma chave” na minha vida. Eu pude sair do senso comum e aprofundar nas questões humanas para ter uma opinião própria, não só escutar o que os outros diziam e aceitar como verdade. Meu senso crítico ficou mais apurado, tanto na minha vida familiar, mostrando para minhas filhas o seu valor, quanto no trabalho, para entender que eu sou capaz e mereço estar onde estou.

Nos meus 30 anos de trabalho, fui a única ou uma das poucas mulheres negras  em cada local que atuei. Isso não acontecia porque outras mulheres negras não queriam estar no meu lugar. É questão de falta de oportunidade e baixa autoestima que, durante muito tempo, fez com que as mulheres negras não almejassem empregos melhores. É isso que a consciência negra nos faz enxergar para buscar as mudanças que precisam acontecer em nós mesmos e na sociedade.

Copass: O que você acha que as pessoas negras precisam fazer para se fortalecer cada vez mais na sociedade?

Shirley: As pessoas precisam se engajar, lutar pelo coletivo, participar de forma direta ou indireta das questões políticas, acompanhando as ações e movimentos que tratam de racismo e igualdade de oportunidades. Não dá para ficar só reclamando, mas alheio ao que acontece. Somos agentes da sociedade, capazes de promover mudanças na nossa vida e no futuro das próximas gerações. Se estamos neste ponto agora é porque nossos antepassados lutaram para que tivéssemos uma vida melhor. Temos que continuar lutando.

Copass: Existem questões que são pouco discutidas em relação à pessoa negra e que ainda te incomodam?

Shirley: Há determinadas falas e comportamentos que parecem banais para quem fala, mas, para quem escuta, causam desconforto. São padrões imaginados para definir a pessoa negra. Frases como, por exemplo: “toda mulher negra sabe sambar”,” mulher negra é boa na cozinha”, “negras têm um tipo de corpo definido”, “não sentem frio”, entre outras falas, são comuns e eu escutei muito ao longo da vida. Mas quando a raça ou a cor da pele são usados para definir as pessoas, vai se perdendo a identidade.